1 de dezembro de 2015

TEMA 12: O MUNDO DE SANSÃO E AS TESOURAS CEGAS (CHARLES LIMA)

Sansão e Dalila, obra de Peter Paul Rubens



BAILA COMIGO. SEMPRE!


À meia luz.   2/2.
Balbucio algo em seus ouvidos.
O globo malemolente incita nossos desejos mais recônditos.
Envolvo-me na sua cintura molhada e esguia.
Em círculos desenhamos a música no chão do salão.
Dá impressão de que o tempo parou e permitiu o eterno.
Como tudo caminha para o fim, a música inicia seu término.
Suas colcheias e fusas vão esmorecendo
Custo acreditar que algo de valioso se dissipa.
Aprofundamos num beijo
Estáticos

***

Não há mais círculos.
Há apenas o ponto fixo no salão, e dali, começamos a morrer.


Charles Lima




SANSÃO - HERÓI UNIVERSAL

O menino nasceu pra cumprir a jornada
Desde cedo, balbuciou certezas.
forçou as pernas para caminhar,
rabiscou planos e aventuras.

Aos 10, parou de cortar os cabelos.
Cavalgava de bicicleta.

Com 12 viajou de trem.
Com os pais.

Com 15 encontrou o amor,
mas pouco durou,
dos beijos desejados a frustração de não querer.

Reiniciou a jornada, desejou ser herói.
Comprou a lanterna, guardou.
A melhor mochila e barraca, guardou.
Comida enlatada, guardou.
Mapas e bússola, guardou.

Aos 18, convocado.
Exame de rotina, medidas anotadas,
porte físico completo.

De tudo que guardou
nada usou.

Na entrada, os cabelos negros caíram no pátio
                                               Junto com outros espalhados.

Arma na mão, sem coragem nem força, roupa camuflada,
Sangue no chão, estouro de bombas.

Sansão estava no chão.
A jornada terminara. Sem leão nem deuses.
Apenas armas, trincheiras e gritos de dor.


 Thais Lopes




Pudera eu buscar uma força
que não tenho
Quisera que o mundo me ouvisse
ao menos uma vez
E eu diria do amor que hoje desdenho
que o faço por fraqueza
e pequenez
E que se chances eu tivesse
de ser grande e forte e verdadeiro
para esse amor eu gritaria
e ao mundo inteiro:
Eu era a caça abatida
onde vias a fera
E tu de fato me tens
como sempre me tiveras.


Oswaldo Jr.





FUNDAMENTAL

O Homo Sapiens abre ao jornal (Folha, Estadão) antes de ir para o escritório, lê com desdém a manchete sobre Paris e o número de mortos e coisa e tal e fala alto “...bem feito! Quem mandou se aliar com os americanos? É bom pra aprender!” enquanto a mulher, doutro lado da mesa só escuta, nem se atreve opinar (pra quê?). No caminho do trabalho, não consegue passar de 40, 50km/h, deseja ter a rua só pra ele (por que não?). No rádio (só ouve Eldorado), acusações de evasão de divisa do Cunha. “Isso é coisa de petralha, onde já se viu? Agora isso, pra tirar o foco deles... Esse país é um puteiro mesmo...” . Recebe uma ligação. Consulta de um processo, sobre o qual resolve nas próximas oito quadras. Sob o minhocão, os moradores de rua de sempre. Por ele, mandava tudo de volta pro nordeste, bando de vagabundo. Num semáforo, meninos fazendo malabares. Certifica-se que o vidro está fechado, a porta trancada e respira mais aliviado. “Esses merdinhas devem ter fugido da Fundação Casa, só pode!”. Tem certeza absoluta que o governador está no caminho certo quando propõe a construção de mais presídios. Decisão acertada, como sempre. Enquanto passa pela Paulista: “...essa merda de ciclovia é coisa de gente desocupada. Só pode. Servicinho de merda desse prefeito Suvinil...” mas diminui a velocidade pra olhar a bunda de uma menina que anda numa bicicleta amarela e ainda tem espaço pra mais umas duas ou três buzinadas por causa de motoboys, ciclistas, carros que andam devagar, essas coisas de país atrasado, sabe como é? Quando chega ao escritório, cantadinha barata na secretária novinha, cafezinho (com adoçante) para ouvir as últimas dos colegas, depois banheiro, lendo a Veja enquanto caga feliz, depois Facebook, pra se manter atualizado e aproveita pra fazer reserva pro musical da Claudia Raia no fim de semana. Pronto! O Homo Sapiens está preparado pra dar sua melhor contribuição para a empresa, para o sistema, para as coisas nas quais ele acredita. Mas o mundo, o país, a cidade não merecem alguém tão especial quanto ele. E ele realmente não entende. Porque definitivamente, algo deve estar muito errado.
Ele só não sabe o quê.



Wallace Puosso

25 de novembro de 2015

TEMA 11: ACOSSADO (WALLACE PUOSSO)

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Refugiados


Política retrocesso
fundamentalismo no Congresso
(trágica) lama em Mariana
tiros na cidade Luz
Intifada, Intifada
refugiados sírios
Afegãos
de Kosovo
e Paquistão
austeridade fiscal
arrocho salarial
evasão de divisas
intolerância
impermanência

Somos resultado de uma experiência
que não deu certo

e continuamos fugindo
fingindo que não é com a gente


Wallace Puosso



Meu tio

I
Ele está velho, meu tio
Meu tio que sempre foi jovem
Meu tio mais jovem que eu

Meu tio de barba de paina
De olhos azuis reluzentes
De um brilho que sempre foi seu


II
A perda não marcou o seu rosto
Mas decerto marcou seu olhar
Mais triste nas imagens que vejo

Ouço o fraquejar de sua fala
Mesmo nas frases alegres
Quando tenta soar bem gentil


III
Meu tio dos momentos felizes
Que é velho sem nunca ter sido
Acuado pelo que não se esquece

Tentando fugir da lembrança da dor
Arqueou o seu corpo, o meu tio
Como eu nunca pensei que pudesse


Oswaldo Jr.



Perseguição Noturna

Entre estrelas e planetas,
heróis e vilões, deuses e mortais
Entrou na nave, com as melhores armas
Pronto pra batalha, seja qual for

Correu o Universo
atrás de cometas
Buscou soluções para problemas
Seguiu placas em vão

No meio do caminho acordou
Suspirou e transpirou seu eu
Mastigando e engolindo o destino
Soluçou aliviado

Fugir – a melhor maneira de dar a volta ao mundo.
Parar – a solução pra encontrar-se.
Perseguir – o levou a desilusão na crueldade.
Concentrar – meio de interiorizar a morte.

Toc Toc toc
O dia raiou anunciado pelos passos da casa de cima.
Sentado na cama sorriu aos sons dos pássaros à janela.
Disse baixinho ao travesseiro:
“Foi apenas mais um sonho!”.


Thais Lopes



Reconheço. Recomeço?

Sim
Agredido, acuado, e todos os sinônimos que queriam a massa media e todos os “dominantes” do mundo inculcar em nossas mentes e, consequentemente, nas nossas ações.
A Lei de Talião há muito tempo se faz presente e os modos ditos cristãos (ou éticos, uma vez que ética está à cima da religião) andam em declínio.
Partir da construção do nosso self pelo outro, é um dos maiores dificuldade do ser humano.
E na maioria das vezes por algo que não é palpável: Deus, Deuses e adjacências.
Assim sendo me recuso a participar de um pensamento unilateral, pan-ópticos etc, pois a ciência não cabe nessa pista de mão única. Nem prega o maniqueísmo entre bons e maus, civilizados e bárbaros...
Sei também que a ciência não resolverá o mundo. Nem sei que há solução.
Mas a utopia é a salvação! Pois ele é o caminho, o processo, ...
Sei que enquanto observa o pássaro da janela não irei resolver o rio que morreu, a etnia exterminada, a chacina de jovens europeus, que mascam trident e, no verão se banham no sol da Martinica.
Sou um pequeno burguês?
Talvez. Mas todos os dias no exercício do magistério, zelo pela ética, pela alteridade, pelo amor ao próximo, além de dar o exemplo, que é melhor.
Dessa forma, no desafio dessa semana mudaria o título: impotente (só por hoje), acossado não.
Pois amanhã enquanto a brisa da janela me renovar, novamente, (sobre  a presença do criador) subirei as escadas e lá não me ausentarei de minha responsabilidade.
Observe: não é no céu que irei chegar, mas quem sabe atingir mais um degrau para que o futuro seja mais harmonioso. (Não o Éden, pois isso é bobagem).

Polissemia, intersecção, fusão, fenomenologia, amor, processo, ...

Fazem parte desse desabafo.

Obrigado,

Boa semana



Charles Lima

22 de novembro de 2015

TEMA 10: GRITOS NO QUARTO ESCURO DO CORAÇÃO (THAIS LOPES)

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Gritos no quarto escuro do coração


Tiroteio sem inicio nem fim; balas perdidas em busca de companhia; crianças descalças correndo em ruas sem asfalto; mulheres e seus cigarros como confidentes; homens engraxando os coturnos esperando o sinal; focinheiras nos cachorros alimentados com carne;

Corações sufocados pelo egoísmo; latas de refrigerante na banca em promoção; revistas não lidas nem vistas; livros sagrados devorados em busca de respostas; ‘esperança’ nome do gato de estimação que dorme o dia todo.

Imagens da rotina daquela menina que busca água pra família; nuvens para os olhos do menino que sonha ter um coturno; saliva transbordando por entre os dentes dos cães na hora do ataque – comida; gritos silenciosos das mulheres violentadas; lágrimas desesperadas das mães que perderam seus filhos em confrontos inexplicáveis.

O coração pulsa. Válvula de bombeamento de sangue para o corpo. Ponto vulnerável e potente do Ser Vivo. Válvula de compressão que pulsa e empurra o movimento do Ser.

Pulmão filtro. Mecanismos de bombeamento de ar mecânico. Sistema que filtra o ar fétido no campo de batalha. Bomba que balança entre o olhar e o ar, impulsionado por sustos e surtos.

Grito. Som constante acorda cedo e ajuda a adormecer, musica de ninar e acalentar. Tom constante inaudível, pessoal e intransferível, volúvel e volátil.
Despertador interno, temporal e atemporal. Pânico externo. Resistente a   milhares de anos.

Assim grito no quarto escuro do coração a palavra proibida.


Inspirado no texto “A mulher como campo de batalha” de Matéi Visniec



Thais Lopes




Longa é a noite

No quarto escuro
Uma pessoa ausente
O que os olhos não veem
O coração inocente


Oswaldo Jr.




Remonto o futuro num jogo de cartas prevendo o passado remoto nos olhos que dizem não
noite bela e comovente sigo imune, indiferente a qualquer construtivismo
corro a vista pelo jornal como pão de anteontem (domingo é um dia só) impune, prossigo insistente entre uma rajada de obviedades
passado o clamor do nada eis que surge uma fresta um halo de vida

quero surpreender o sol antes do sol
raiar


Wallace Puosso




Pé espalha
Sustentáculos.
Pé de bailarina de vestido rodado.
Pé de trilho andarilho:
(de rg manchado, de naturalidade borrada, de filiação que falta pedaço)
Pé de pista de sapato surrado com borras de nicotina e de cheiro de éter derramado
Pé de São João Batista peludo de unhas encravadas
Pé de misericórdia de olhos voltados (vendados) ao céu.
Pé de bacia de água turva
Pé (de) sem cutícula de unhas princesinhas a espera do Dândi elegante
Pé de caatinga de terra rachada de dor de existência
Pede pede pede às vezes a porta se abre.
E na mesa tem banquete.
Ao gargântua esfomeado.




Charles Lima

18 de novembro de 2015

TEMA 9: NADA A DIZER (OSWALDO JR.)


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Procurar você é estar ausente de mim em busca de um próprio.
Entre deslocamentos, negações e labirintos sigo rastreando vestígios.
Onde estão as legendas do mapa?

Charles Lima




Nada a dizer
aos rudes
aos brutos
aos prédios

Nada a dizer
às virtuosas
às fantasias
às ruas estreitas

Nada
de rude nas virtuosas
Nada
de bruto nas fantasias
Nada
de prédios em ruas estreitas

Pra dizer "Nada"
Melhor gritar para o Silêncio.


Thais Lopes




limpa o jazigo
ajeita as flores
compromisso assumido
semana após semana

em silêncio
ninguém precisa saber

Oswaldo Jr.



(ENTRA) entrevista aberta a perguntas um dois testando um dois sim você primeiro você de pulôver vinho ok posso falar sobre isso também vamos lá um desafio é sempre um desafio é bom que todos saibam talvez o alpinista frente à avalanche iminente não pense dessa forma dessa forma damos significados vários à várias coisas sem significado ou aparentemente sem ou quem sabe a beleza reside na dúvida por isso vou deixar a sua pergunta sem resposta mocinha a dúvida permeia a criação a curiosidade necessidade impulsionam inventos e ideias que ainda hão de se tornar forma tátil mas isso é o de menos agora rapaz puta sacada aquela de escrever sobre as relações principalmente as relações em conflito com seus muros cercas arames farpados moral indigesta palavras que não são ditas olhares que ferem mais que mil vespas bom voltando à pergunta espero que estejam me ouvindo bem as palavras as palavras me cerco delas no palco nos livros nos antigos ensinamentos na bíblia sim eu leio a bíblia não não sou religioso é melhor mudarmos de assunto sim as palavras elegem o poeta o drama espia o espectador as notas penetram audições atentas a arte é a pimenta que falta no planeta sobre o que mesmo eu estava falando ah sim relações desculpe não entendi ah sobre minhas relações pessoais prefiro não falar nas coisas que escrevo o silêncio os parênteses as aspas as palavras repetidas são tão importantes quanto as palavras em si ordenadas em fila os versos ordenados em linhas e assim por diante repete a pergunta não entendi minha opção sexual é assunto de foro íntimo esse caminho é perigoso vocês da imprensa sempre fazendo as perguntas erradas olha só não quero falar sobre certas coisas já disse minha arte responde por si e  por favor não insistam se é pra ser assim esta entrevista termina aqui boa tarde (SAI)

Wallace Puosso

13 de novembro de 2015

TEMA 8: INESPERADO (WALLACE PUOSSO)


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Uma situação inesperada
surge para nos dizer
que não temos controle
sobre a vida.

Quem manda em nossos
destinos: nós mesmos?
Ou é a Vida quem manda?

Ainda, outra dú(vida):
- é uma parceria?

 Luiz Felipe Rezende



Inesperado aquilo. Bom, Inesperado talvez nem seja a palavra certa, mas por falta de palavra mais adequada ficou inesperado. Aquilo surgiu antes. Bem antes. Aliás, muito tempo antes. Não soube dizer como chamava, se era bom, se fazia bem, se queria mais. Não soube até acontecer. Aquilo que pra ele ainda não tinha nome, era só uma sensação aconteceu. Porque acontece com todo mundo. Um dia. Acontece e pronto. Ele só não estava preparado. Nunca esteve. Isso é bom! - alguém lhe disse. Bom pra quem? – retrucou na sua insegurança habitual. Sempre fora assim. Perdido entre mais de uma escolha. Mas daquela vez não houve alternativa senão aceitar. Aceitou relutante. Como era de se esperar. E se surpreendeu. Era bom. Fazia bem. E queria mais. Bem mais. Aliás, muito mais. Isso que ele passou a chamar amor. E agora aquilo tinha nome e havia se transformado em parte fundamental dele. Amor. Porque acontece com todo mundo. Acontece e pronto. Mesmo que seja inesperado.

Wallace Puosso



escapou-me das mãos
eu não tive culpa
não sabia que era tão frágil

sim, você me assustou
tirou-me o equilíbrio
Agora está ali, quebrado

nosso amor de outros dias
nosso amor que foi bom
sem conserto, em pedaços no chão

(diz: você varre ou eu varro?)

Oswaldo Jr.



Ainda era madrugada quando abriu a geladeira. Estranho... O hálito frio era até natural de se esperar – mas, em vez dos alimentos (e uma última lata de cerveja), foi peculiar dar de cara com uma paisagem digna daqueles quebra-cabeças que montava com os pais na longínqua infância. Ele parecia olhar da janela de um avião: lá estava a cordilheira dos Andes, nevada, linda – e talvez ainda o esperasse, lá embaixo, o emprego displicentemente recusado por ele após o doutorado.
Enquanto olhava as montanhas, mais admirado que propriamente assustado, escutava em sua cabeça uma voz que dizia: “salte... vamos lá... salte!”
(Todos temos uma voz assim dentro de nós: façam silêncio e não dou cinco minutos para começarem a ouvir. É por causa disso, aliás, que algumas pessoas parecem ter horror a silêncio.)
Lembrou-se do avô, até os últimos momentos: “O importante é manter o espírito aventureiro!”
Então saltou. Esperava descer suavemente, pois tinha a convicção inabalável de um paraquedas às suas costas. Mas não foi o que aconteceu...
Subiu. E muito! Não se lembrava de como manusear os controles do propulsor – caramba, o antigo simulador de voo no seu computador não tinha a opção de “jato dos Jetsons” ou coisa assim. Atingindo as nuvens, acalmou. Como era bom estar ali! A essa altura, já conseguia voar na horizontal e, embora não precisasse realizar qualquer movimento para seguir voando, não resistiu à tentação e esticou os braços para a frente, realizando assim um sonho: em plena maturidade, seu dia de Superman havia enfim chegado.
Voava tranquilo quando seu superolfato (só podia ser isso) detectou um aroma delicioso alguns quilômetros abaixo. Apontou e desceu, quase verticalmente. Esperava encontrar um banquete ao ar livre ou talvez uma pizzaria. Nada disso. Pousou praticamente dentro... de um rio! Mas dizer isso seria restringir a experiência. A verdade é que ele era arrastado por uma estranha e densa correnteza. Chedar, talvez? Mas devia haver um pouco de vinho na composição... A coisa toda era inebriante, sem dúvida. Só faltava o pão...
Para não perder o equilíbrio em pleno mer du fromage, instintivamente agarrou um dos galhos (ou raízes?) próximos a uma das margens. Teve então uma sensação dúbia: havia ali simultaneamente maciez e crocância... mas... então... sim! Mergulhou satisfeito a baguete no gruyère fundido (ainda estava confuso quanto ao componente primordial ali presente) e foi feliz, não pela primeira vez naquele dia.
Tudo depois fluiu maravilhosamente: “Não é você, não há esforço: o arco deixa cair o tiro e tudo simplesmente acontece”, já dizia o mestre. Compreendeu: não havia mais o inesperado, pois nada mais era sequer esperado. Apenas ERA, e pronto.
A chuva de luz foi um dos pontos altos daquele dia. Em êxtase, ele simplesmente ficou deitado à sombra das chocolateiras, apreciando os polígono-íris, tão belos em suas onze cores e tão diferentes dos arco-íris terrestres.
Por fim, deixou-se adormecer ali mesmo. E sonhou que estava diante de uma tela, escrevendo...



Paulo R. Barja

9 de novembro de 2015

TEMA 7: O QUE EXISTIU ANTES DE NÓS? (LUIZ FELIPE)


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ANTES (E DEPOIS) DE NÓS

O que existiu antes de nós? A pergunta martelava em sua cabeça. Mas algo dizia que o pior estava por vir. Imaginar que ainda seria chamado de ignorante, primitivo, ultrapassado, cérebro de noz e outros absurdos assim... Só mesmo com muita paciência pra aturar aquilo tudo. E ele aturava, porque sabia: partir para a ignorância seria perder imediata e irreversivelmente a razão, até o final dos tempos.
O que houve antes de nós? Outros parceiros e parceiras, naturalmente. Afinal, havia razão para tamanho espanto? É da vida, e quem fica remoendo o passado perde a chance de viver o presente – talvez até a perspectiva de futuro.
Antes de nós, provavelmente, seres menores, vida mais simples... E a temperatura? Por alguma razão, a dúvida havia surgido na sopa primordial dos pensamentos.
O tempo passava. Sim, brincava ele de si para si, eis uma conquista do nosso tempo... A própria existência de tempo. Talvez tenhamos, então, inaugurado alguma coisa realmente importante: a noção de tempo.
A noite chegava e, com ela... A fome crescia, mas não (só) a fome biológica. Ele precisava de respostas, e sentia aproximar-se o desespero ao constatar a dificuldade de formular, com um mínimo de precisão, sua tensa e inevitável pergunta: o que...?
Perto das copas das árvores, encontrou alimento farto. Isso o consolou: acho que teremos para sempre, aqui em cima, é só esticar o pescoço e...
Afinal, o que houve antes de nós? Calor, talvez. Agora, o que havia era frio, muito frio – um frio que crescia, inundava tudo, impedia até de pensar.
Ao longe, um deles começou a rugir. Ouviu-se uma longa série de gritos... Primeiro, eram aterradores; depois, incômodos; em seguida, apenas ruidosos. Em questão de minutos, ele teve sincera pena ao ouvir o que parecia ser um último suspiro. Tristeza...
Viu o tiranossauro cair, para não mais se levantar. E ele, o herbívoro da turma, entendeu que também não teria muito mais tempo ali.
O resto é silêncio.


Paulo R. Barja




O CORAÇÃO DA PEDRA

                  
Olho para o coração da pedra
e tento vislumbrar
o que ela traz de outras eras.


Olho para a pedra com simpatia
o que temos em comum:
minerais nos meus ossos
que se temporizam
e se dissolvem
sob as chuvas dos meus anos.


Ela resiste quase uma eternidade
deve se gabar
diante de minha brevidade.


E nós tão humanos
enquanto elas tão pedras
às vezes os reinos
não se encontram.
Os eretos, ilusoriamente geométricos
e elas, as curvas, disformes e estáticas.


Olho para o coração da pedra
e tento vislumbrar
o que ela traz de outras eras
até o meu tempo.


O meu tempo é sopro
enquanto reino, crente
que sou rei,
ignorando que no final
dos meus dias
ela olhará com indiferença
pensando que em sete mil anos
é apenas mais um orgânico
que viu nascer, crescer, viver
e depois retornar ao reino mineral.

Luiz Felipe Rezende



Latência

No que me lembro de mim
eu era assim, meio que um sopro
o fôlego que se toma antes do salto
o músculo alerta, tensionado
a força que antecede a ação
Antes de existir você.
Eu era, sim, a tela com o esboço
a inspiração antes da fala
Mesmo pronto para o voo
eu era apenas a minha base
Antes de você, sim
eu era um quase.


Oswaldo Jr.



aos que virão depois de nós


Agora só quero cantar coisas
e cores e nomes, formas e coisas
que me digam respeito
que sejam de praxe
com verbo novo e sintaxe
flor do lácio o sambódromo
ELZA NOEL e CARTOLA
flor do ócio, extremo oriente
flor do ódio potência e declive
AMÉRICATÓLICA destila (e nem sente)
pra que SEATTLE se temos RECIFE?
e e e e ma-ra-ca-tu atô-mi-co
monólito da batida MANGUE B-E-A-T
Pra que MIAMI se temos GUANABARA?
Atrás do arranha céu tem o céu tem o céu
tem o mel e a morena Iara que brota do mar
Pra que BASQUIAT se temos GENTILEZA?
Pra que JEFF BECK se temos MUTANTES?
e antes, o que é que havia antes?
Havia o sonho o sol o céu e o mar da BOSSA
JOHNNY WALKER aqui é CACHAÇA
Vamos brindar aos santos de todos os cantos
e aos tantos orixás e iorubas:
nagô, xangô, nação zumbi, viva ZUMBI!
Pra que GERSHWIN se temos TOM JOBIM?
Pra que MARILIN MONROE se somos LEILA DINIZ?
GAL CLARA ELIS (e quem mais vier)
Pra que GAUTIER se temos BISPO DO ROSÁRIO?
Andando a esmo, em sentido anti-horário
com brilho brilho de sol próprio
Agora só quero cantar coisas
e cores e nomes, formas e coisas
que me digam respeito

E o resto o resto é passado

  

wallace puosso

5 de novembro de 2015

TEMA 6: CICATRIZES (OSWALDO)





Na hora de dormir

Aos 50 anos deu de escrever poemas autobiográficos
Causa provável: falta de assunto.
Ou medo da morte, essa que nos apaga aos poucos
da memória do mundo, quando deixamos de escrever
Em ambos os casos, um quê de vaidade profunda
Que histórias teria esse simples vivente
tão diferentes da minha e da sua?
Ele fala de marcas que o tempo deixou, de cicatrizes
que só hoje consegue mostrar
E acha que isso deverá servir para alguém.
Talvez ele esteja certo.
Eu, quando jovem, tinha certezas demais
para admitir que algo estava fora do lugar
Hoje quase consigo mostrar meus defeitos
Mas ele, ele segue narrando suas mazelas
acreditando que interessará a alguém saber
que ainda o acalma o mesmo carinho
que recebia de seu pai quando bebê
Um suave carinho nas costas
na hora de dormir.


Oswaldo Almeida Jr.



Cânions

Somos feitos de matéria frágil
numa relação delicada c/ o tempo

Há marcas (que ficam)
(há marcas) que somem
há um pouco de dor em toda saudade
e prazer no ato de sobreviver
à queda / ao tombo / à fricção

Não há razão para estamos triste
disse ele àquela garota
Estamos juntos
apesar dos desvios
das adversidades
dos atalhos (que às vezes não chegam)
a lugar nenhum

Somos feitos de retalhos
do que somos, do que fomos
e o que ainda queremos (ser)

Eu quis mudar o mundo
quis ser super-herói
desejei a garota mais bonita (da escola)
quis ter uma banda
mas
a vida é (ou assim parece)
feita de escolhas
você já reparou?

Onde esta estrada nos levará?

Somos feitos de matéria transitória
numa interação intensa entre forças opostas

A memória é o que fica (depois de tudo)
o mundo se torna pequeno demais
quando temos vontades / desejos / anseios

Repare:
está tudo registrado no corpo
na alma
na pele
na memória da pele

(eu vivi os limites do que me foi possível)

Há marcas que marcam
outras que preferimos ignorar
e há as que fazemos questão
de mostrar

Não há porque se envergonhar:
essa história é só sua
disse o cara do talk show ao
seu entrevistado
uma narrativa particular
sua história com começo, meio fim e

[PAUSA]

Onde é que eu estava mesmo?

[PAUSA]

Ah, sim.

Somos feitos de matéria frágil
numa relação delicada c/ o tempo

o tempo

o tempo


Wallace Puosso




Cicatrizes

Enquanto esperava (afinal, o que é que esperava?), rabiscava palavras desconexas na folha de papel, como num daqueles jogos de associação livre. Não era um poema. Jamais seria um poema, embora conhecesse quem fosse capaz de sair sacudindo o papel e mostrando o “poema novo, poema novo!”. Pensando nisso, parou de escrever.
Riscou as palavras escritas. No início, com desleixo. Depois, em riscos metódicos, cuidadosos até, com gestos de artista, como quem faz uma nova tatuagem sobre uma tatuagem antiga.
Mas o fato é que a folha já estava irremediavelmente marcada quando, depois dos riscos, resolveu-se a apagar as palavras escritas a lápis.
Amassou o papel.
Desamassou o papel.
Recomeçou. Era essa a recomendação terapêutica: escreva!

*  *  *

Ao primeiro toque, ainda que de leve, poderia-se dizer que ambos - ele e ela - reagiram assustados. Era como se, ao tocá-la, ele inaugurasse um processo de reconhecimento mútuo que ainda levaria semanas, talvez meses para atingir a plenitude. Como dizer? Ainda não se pertenciam.
Compreendendo a delicadeza necessária, lenta e suavemente ele a percorria - macia e rosada - com dedos curiosos, carinhosos. Ela o recebia em silêncio, sem pressa. Naquela noite, entre idas e vindas, conversaram muito, sem precisar de palavras. Palavras, afinal, só eram necessárias para quem cogitasse uma despedida – e ambos sabiam que jamais haveria uma despedida entre eles.
Na manhã seguinte, juntos receberam o café na cama. Juntos, o almoço pobre em sal e sem tempero, mas estranhamente agradável. Juntos contemplaram a tarde através da persiana, sem braços que alcançassem os pássaros do lado de fora, mas serenamente felizes pelo canto que chegava no quarto, vencendo o zumbido frio do ar condicionado.
Dois dias depois, receberam alta e foram para casa. “Faço questão de chamar o táxi!”, disse o médico - e aquele gesto simples de delicadeza embalou-os num conforto de compreensão impossível para quem não estivesse dentro deles.
A vida, enfim, aguardava-os. O futuro a ambos pertencia. E assim seguiam juntos, alma e pele, quase sem saber quem era cicatriz de quem.


Paulo Barja




Cicatrizes

Acidente geográfico talhado
na pele:
um rio seco
um lago degradado ou relevo
indelével, irremovível
Um desenho atípico,
ao acaso, imprevisível.

( - Essa no meio da mão foi quando
caí com uma garrafa de guaraná
na rua -
o mesmo lugar, onde anos mais tarde
atropelei o Opala azul do seu Orlando Resende
com a minha bicicleta.
A outra foi adquirida
no futebol de salão
em que vi os tecidos
do braço se abrirem como se estivesse
numa aula de anatomia).

Essas servem pra gente
contar numa festa
de aniversário entre os amigos
(não ocorreram maiores traumas).

Outras  atingem
a alma e algumas delas
imobilizam, travam
e se tornam senhoras do destino
(normalmente não falamos delas).

Depois disso tudo
me  respondam:
- quem não tem
cicatrizes no corpo
ou na alma?
Ou até em ambos?


Luiz Felipe