Na hora de dormir
Aos 50 anos
deu de escrever poemas autobiográficos
Causa
provável: falta de assunto.
Ou medo da
morte, essa que nos apaga aos poucos
da memória
do mundo, quando deixamos de escrever
Em ambos os
casos, um quê de vaidade profunda
Que
histórias teria esse simples vivente
tão
diferentes da minha e da sua?
Ele fala de
marcas que o tempo deixou, de cicatrizes
que só hoje
consegue mostrar
E acha que
isso deverá servir para alguém.
Talvez ele
esteja certo.
Eu, quando
jovem, tinha certezas demais
para admitir
que algo estava fora do lugar
Hoje quase
consigo mostrar meus defeitos
Mas ele, ele
segue narrando suas mazelas
acreditando
que interessará a alguém saber
que ainda o
acalma o mesmo carinho
que recebia
de seu pai quando bebê
Um suave
carinho nas costas
na hora de
dormir.
Oswaldo
Almeida Jr.
Cânions
Somos feitos de matéria frágil
numa relação delicada c/ o tempo
Há marcas (que ficam)
(há marcas) que somem
há um pouco de dor em toda saudade
e prazer no ato de sobreviver
à queda / ao tombo / à fricção
“Não há razão para estamos triste”
disse ele àquela garota
“Estamos juntos”
apesar dos desvios
das adversidades
dos atalhos (que às vezes não chegam)
a lugar nenhum
Somos feitos de retalhos
do que somos, do que fomos
e o que ainda queremos (ser)
Eu quis mudar o mundo
quis ser super-herói
desejei a garota mais bonita (da escola)
quis ter uma banda
mas
a vida é (ou assim parece)
feita de escolhas
você já reparou?
Onde esta estrada nos levará?
Somos feitos de matéria transitória
numa interação intensa entre forças opostas
A memória é o que fica (depois de tudo)
o mundo se torna pequeno demais
quando temos vontades / desejos / anseios
Repare:
está tudo registrado no corpo
na alma
na pele
na memória da pele
(eu vivi os limites do que me foi possível)
Há
marcas que marcam
outras
que preferimos ignorar
e
há as que fazemos questão
de
mostrar
“Não há porque se envergonhar:
essa história é só sua”
disse
o cara do talk show ao
seu
entrevistado
uma
narrativa particular
sua
história com começo, meio fim e
[PAUSA]
Onde
é que eu estava mesmo?
[PAUSA]
Ah,
sim.
Somos
feitos de matéria frágil
numa
relação delicada c/ o tempo
o
tempo
o
tempo
Wallace
Puosso
Cicatrizes
Enquanto esperava (afinal, o que
é que esperava?), rabiscava palavras desconexas na folha de papel, como num
daqueles jogos de associação livre. Não era um poema. Jamais seria um poema,
embora conhecesse quem fosse capaz de sair sacudindo o papel e mostrando o
“poema novo, poema novo!”. Pensando nisso, parou de escrever.
Riscou as palavras escritas. No
início, com desleixo. Depois, em riscos metódicos, cuidadosos até, com gestos
de artista, como quem faz uma nova tatuagem sobre uma tatuagem antiga.
Mas o fato é que a folha já
estava irremediavelmente marcada quando, depois dos riscos, resolveu-se a
apagar as palavras escritas a lápis.
Amassou o papel.
Desamassou o papel.
Recomeçou. Era
essa a recomendação terapêutica: escreva!
* * *
Ao primeiro toque, ainda que de
leve, poderia-se dizer que ambos - ele e ela - reagiram assustados. Era como
se, ao tocá-la, ele inaugurasse um processo de reconhecimento mútuo que ainda
levaria semanas, talvez meses para atingir a plenitude. Como dizer? Ainda não
se pertenciam.
Compreendendo a delicadeza
necessária, lenta e suavemente ele a percorria - macia e rosada - com dedos
curiosos, carinhosos. Ela o recebia em silêncio, sem pressa. Naquela noite,
entre idas e vindas, conversaram muito, sem precisar de palavras. Palavras,
afinal, só eram necessárias para quem cogitasse uma despedida – e ambos sabiam
que jamais haveria uma despedida entre eles.
Na manhã seguinte, juntos
receberam o café na cama. Juntos, o almoço pobre em sal e sem tempero, mas
estranhamente agradável. Juntos contemplaram a tarde através da persiana, sem
braços que alcançassem os pássaros do lado de fora, mas serenamente felizes pelo
canto que chegava no quarto, vencendo o zumbido frio do ar condicionado.
Dois dias depois, receberam alta
e foram para casa. “Faço questão de chamar o táxi!”, disse o médico - e aquele
gesto simples de delicadeza embalou-os num conforto de compreensão impossível
para quem não estivesse dentro deles.
A vida, enfim, aguardava-os. O
futuro a ambos pertencia. E assim seguiam juntos, alma e pele, quase sem saber
quem era cicatriz de quem.
Paulo
Barja
Cicatrizes
Acidente geográfico talhado
na pele:
um rio seco
um lago degradado ou relevo
indelével, irremovível
Um desenho atípico,
ao acaso, imprevisível.
( - Essa no meio da mão foi quando
caí com uma garrafa de guaraná
na rua -
o mesmo lugar, onde anos mais tarde
atropelei o Opala azul do seu Orlando Resende
com a minha bicicleta.
A outra foi adquirida
no futebol de salão
em que vi os tecidos
do braço se abrirem como se estivesse
numa aula de anatomia).
Essas servem pra gente
contar numa festa
de aniversário entre os amigos
(não ocorreram maiores traumas).
Outras atingem
a alma e algumas delas
imobilizam, travam
e se tornam senhoras do destino
(normalmente não falamos delas).
Depois disso tudo
me respondam:
- quem não tem
cicatrizes no corpo
ou na alma?
Ou até em ambos?
Luiz
Felipe
Nenhum comentário:
Postar um comentário