5 de novembro de 2015

TEMA 6: CICATRIZES (OSWALDO)





Na hora de dormir

Aos 50 anos deu de escrever poemas autobiográficos
Causa provável: falta de assunto.
Ou medo da morte, essa que nos apaga aos poucos
da memória do mundo, quando deixamos de escrever
Em ambos os casos, um quê de vaidade profunda
Que histórias teria esse simples vivente
tão diferentes da minha e da sua?
Ele fala de marcas que o tempo deixou, de cicatrizes
que só hoje consegue mostrar
E acha que isso deverá servir para alguém.
Talvez ele esteja certo.
Eu, quando jovem, tinha certezas demais
para admitir que algo estava fora do lugar
Hoje quase consigo mostrar meus defeitos
Mas ele, ele segue narrando suas mazelas
acreditando que interessará a alguém saber
que ainda o acalma o mesmo carinho
que recebia de seu pai quando bebê
Um suave carinho nas costas
na hora de dormir.


Oswaldo Almeida Jr.



Cânions

Somos feitos de matéria frágil
numa relação delicada c/ o tempo

Há marcas (que ficam)
(há marcas) que somem
há um pouco de dor em toda saudade
e prazer no ato de sobreviver
à queda / ao tombo / à fricção

Não há razão para estamos triste
disse ele àquela garota
Estamos juntos
apesar dos desvios
das adversidades
dos atalhos (que às vezes não chegam)
a lugar nenhum

Somos feitos de retalhos
do que somos, do que fomos
e o que ainda queremos (ser)

Eu quis mudar o mundo
quis ser super-herói
desejei a garota mais bonita (da escola)
quis ter uma banda
mas
a vida é (ou assim parece)
feita de escolhas
você já reparou?

Onde esta estrada nos levará?

Somos feitos de matéria transitória
numa interação intensa entre forças opostas

A memória é o que fica (depois de tudo)
o mundo se torna pequeno demais
quando temos vontades / desejos / anseios

Repare:
está tudo registrado no corpo
na alma
na pele
na memória da pele

(eu vivi os limites do que me foi possível)

Há marcas que marcam
outras que preferimos ignorar
e há as que fazemos questão
de mostrar

Não há porque se envergonhar:
essa história é só sua
disse o cara do talk show ao
seu entrevistado
uma narrativa particular
sua história com começo, meio fim e

[PAUSA]

Onde é que eu estava mesmo?

[PAUSA]

Ah, sim.

Somos feitos de matéria frágil
numa relação delicada c/ o tempo

o tempo

o tempo


Wallace Puosso




Cicatrizes

Enquanto esperava (afinal, o que é que esperava?), rabiscava palavras desconexas na folha de papel, como num daqueles jogos de associação livre. Não era um poema. Jamais seria um poema, embora conhecesse quem fosse capaz de sair sacudindo o papel e mostrando o “poema novo, poema novo!”. Pensando nisso, parou de escrever.
Riscou as palavras escritas. No início, com desleixo. Depois, em riscos metódicos, cuidadosos até, com gestos de artista, como quem faz uma nova tatuagem sobre uma tatuagem antiga.
Mas o fato é que a folha já estava irremediavelmente marcada quando, depois dos riscos, resolveu-se a apagar as palavras escritas a lápis.
Amassou o papel.
Desamassou o papel.
Recomeçou. Era essa a recomendação terapêutica: escreva!

*  *  *

Ao primeiro toque, ainda que de leve, poderia-se dizer que ambos - ele e ela - reagiram assustados. Era como se, ao tocá-la, ele inaugurasse um processo de reconhecimento mútuo que ainda levaria semanas, talvez meses para atingir a plenitude. Como dizer? Ainda não se pertenciam.
Compreendendo a delicadeza necessária, lenta e suavemente ele a percorria - macia e rosada - com dedos curiosos, carinhosos. Ela o recebia em silêncio, sem pressa. Naquela noite, entre idas e vindas, conversaram muito, sem precisar de palavras. Palavras, afinal, só eram necessárias para quem cogitasse uma despedida – e ambos sabiam que jamais haveria uma despedida entre eles.
Na manhã seguinte, juntos receberam o café na cama. Juntos, o almoço pobre em sal e sem tempero, mas estranhamente agradável. Juntos contemplaram a tarde através da persiana, sem braços que alcançassem os pássaros do lado de fora, mas serenamente felizes pelo canto que chegava no quarto, vencendo o zumbido frio do ar condicionado.
Dois dias depois, receberam alta e foram para casa. “Faço questão de chamar o táxi!”, disse o médico - e aquele gesto simples de delicadeza embalou-os num conforto de compreensão impossível para quem não estivesse dentro deles.
A vida, enfim, aguardava-os. O futuro a ambos pertencia. E assim seguiam juntos, alma e pele, quase sem saber quem era cicatriz de quem.


Paulo Barja




Cicatrizes

Acidente geográfico talhado
na pele:
um rio seco
um lago degradado ou relevo
indelével, irremovível
Um desenho atípico,
ao acaso, imprevisível.

( - Essa no meio da mão foi quando
caí com uma garrafa de guaraná
na rua -
o mesmo lugar, onde anos mais tarde
atropelei o Opala azul do seu Orlando Resende
com a minha bicicleta.
A outra foi adquirida
no futebol de salão
em que vi os tecidos
do braço se abrirem como se estivesse
numa aula de anatomia).

Essas servem pra gente
contar numa festa
de aniversário entre os amigos
(não ocorreram maiores traumas).

Outras  atingem
a alma e algumas delas
imobilizam, travam
e se tornam senhoras do destino
(normalmente não falamos delas).

Depois disso tudo
me  respondam:
- quem não tem
cicatrizes no corpo
ou na alma?
Ou até em ambos?


Luiz Felipe


Nenhum comentário:

Postar um comentário