30 de julho de 2010

RENASCIMENTO

Folhas Secas ao Vento

Não. Não era a primeira vez que ele via algo assim acontecer naquela antiga vila operária. Segundo os antigos, outras tragédias haviam passado por ali desde que os indígenas cederam seu lugar a algo mais elevado, mais merecedor, por assim dizer, de todo o progresso que viria depois. A pequena localidade recebera seu nome de um santo operário e, talvez por isso, orgulhava-se de suas incipientes manufaturas e de seus trabalhadores, atraídos das vilas ainda menores ao redor. Nada mais inspirador que nascer de um santo, e nenhum modelo melhor que um santo operário. Ele e seus amigos continuavam olhando para a poeira que ainda baixava enquanto os últimos e débeis redemoinhos levantavam as folhas secas ao vento. Muita gente ficou assustada com a notícia. Todos sem exceção, os descendentes dos indígenas e os forasteiros, estavam certos de que aquilo não era justo. Não com aquela cidade.

Por muito tempo os habitantes da vila construíram a imagem de hábeis artesãos. Dominaram progressivamente a arte da tecelagem, da moldagem da cerâmica e do uso dos ventos. Em uma progressão sutil, mas própria da habilidade daquela gente, passaram a controlar técnicas cada vez mais sofisticadas, abandonando as anteriores, ultrapassadas. O controle do vento foi exemplar da tenacidade daqueles trabalhadores. Como ele não podia ter sido ensinado, pois nenhuma outra localidade no país o dominava, os operários da vila decidiram que iriam, eles próprios, desenvolver meios para que isso se tornasse a atividade operária dos novos tempos. O símbolo da inteligência de um povo. E assim o fizeram. Em muito pouco tempo, o melhor catavento da época foi desenvolvido e apresentado à vila, que agora devia considerar-se Cidade, categoria de agrupamento mais adequada ao status dos produtos que criava. Cataventos de diversos modelos davam prova de que aquela cidade deveria ser levada a sério. Num breve piscar de olhos todos os habitantes estavam envolvidos na produção daquele que seria o ícone da nova urbe, reconhecido além fronteiras e razão do sucesso econômico do antigo povoado. A cidade do santo operário, que dedicou décadas à formação dos operários do vento, como eram chamados, era agora conhecida mundialmente.

E ele era parte daquela tradição. Tanto quanto seus amigos, foi formado para dar seu melhor para a cidade. Quando a notícia enfim veio, já havia circulado como boato nos pequenos grupos operários, que no entanto não acreditaram. Como, afinal, seria possível que um dia o vento acabasse? Toda a história daquele povo havia sido construída com base nos movimentos do ar e seria impossível produzir cataventos se o próprio vento, a matéria-prima de todo o conhecimento, se esgotasse dessa maneira. Por isso a surpresa. Era fato que nenhuma calamidade, fossem enchentes ou epidemias, a falta de escolas ou a ruína de estradas, nada, nada naquela cidade suscitava tanto alarde e pena quanto a demissão ou a morte dos homens que moldavam o ar. Por isso, quando a ausência de vento trouxe a certeza do fim, seus olhares e os de alguns milhares de companheiros somente podiam fitar o infinito.

Recuperar as antigas habilidades talvez pudesse gerar uma espécie de renascimento para a antiga vila operária. Lidar novamente com tecidos, com a terra, que nunca acaba, ou com madeira, quem sabe. Consultar os indígenas e os anciãos. Algo deveria ser feito, e logo. Enquanto pensavam, uma imensa quantidade de matérias-primas lhes passou à mente, todas menos etéreas que aquilo a que estavam acostumados. Para aqueles a quem apetecia brincar com o ar, moldar coisas sólidas parecia coisa do passado, mas ao menos elas estavam ali, e eram visíveis. Nada como o fim das coisas que já não temos, para termos certeza de que não eram indispensáveis. Já que o cenário mudara, talvez ajudasse se soubessem que o santo não era operário, mas carpinteiro. Tanta volta, tanta volta, para descobrirem-se novamente falando de santos, barro e madeira? Parece que tudo volta ao início, sempre. É. Não era a primeira vez que se via algo assim acontecer naquela antiga vila operária.


Oswaldo Jr.

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na natureza selvagem

Quantas vezes você já foi livre?
Quando ela lhe ofereceu a mão você achou que o dia seguinte já não era mais como antigamente. Então você passou a contemplar o tempo, olhando-se por dentro.
Será que paz em excesso assusta?
Desconfortável, os pés às vezes procuram outra forma de andar.
Você só quis ser livre. E não há nada de errado nisso.
Talvez um dia – quem sabe – você se case, tenha filhos, um carro e uma vida modesta.
Você não precisa mais do que já tem. Porque, quando você quiser mais, aí sim você precisará de espaço. Cada vez mais espaço.
E dentro de você, ficará encerrado o horizonte estendido e uma estrada que não acaba nunca. E na sua vida honesta, você estará entardecendo.
Na natureza selvagem, quando o sol se põe, apagamos por dentro, lentamente. E o sono regenera para a jornada do dia seguinte.
O tempo passa rápido, muito rápido e não temos controle algum sobre isso. Mas a vida segue em ciclos. Um novo ciclo a cada manhã.
Cada vez que você abrir os olhos alguma coisa mudou e muda. Sempre.


wallace puosso

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Quando tudo se acalmar, comprarei uma casa em Amsterdam


Noites e noites deitado ao teu lado,
Observando a volúpia das tuas curvas;
A doação das tuas óstias...

Me alimentavas feito uma planta rara;
Me iluminavas feito uma noite esquecida.

O começo da nossa história deu-se no dia
Em que a convidei para bailar
Nas areias esquecidas e escuras de Bertioga.

Sexta-feira-santa,
Uma tempestade cinza invadiu-me o peito,
Um convite ao desapego,
Foi impossível evitar a separação.

Em frente ao porto de Santos
E pronto para nunca mais voltar,
Apaguei o foco do desespero
Nas lágrimas que caiam
Feito gotas musicais dos olhos dela,
E deixei-a entre andorinhas, mendigos e embarcações,
Feita uma estátua de cimento.

- parti -

O renascimento está
Não naquilo que acredito,
Mas sim,
Naquilo que invento.


Réginaldo Poeta

28 de julho de 2010

INESPERADO

De repentes

A surpresa do toque

no meio da madrugada.

O brilho do sol na pele da minha amada.


Oswaldo Jr.
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inesperado amoratado


na impossibilidade do telefone tocar

o silêncio rebate pelas paredes da memória

depois de tudo
a palavra que sai da boca

deixa o coração assim sem eco

o relógio poderia parar, quem sabe

aquela carta que nunca chegou

aquela promessa antiga de ser pra vida toda

e as flores que não puderam ser entregues

ele já chamou aquela garota de princesa

deslumbrado com sua beleza

“o amor perdura pra sempre”

afirmou o pastor do alto do púlpito

para quem ainda acredita

(na impossibilidade do encontro) nos tornamos nickname

twitando por aí, continuamos sozinhos

“o mundo é grande que não acaba”

observou o astronauta na estação espacial

e a vida, curta demais

“talvez tudo pudesse ser diferente”

ela silencia, talvez com um pouco de vergonha

porque esteve sozinha sentada à mesa

“é... talvez...” - ele repete pra si

na impossibilidade de outra palavra
inventei coisas em desuso
amoratado, amorinteiro, serseu

"essa história foi rápida demais"

reclamava a garota na fila do autógrafo

ela já deveria saber

vida de poeta é como biografia de furacão


wallace puosso

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Vida em construção

Terça-feira, 20 de julho
Túnel interditado e ele decidiu com alguns amigos
Voar com seu skate rumo ao céu e foi...

...foi atropelado violentamente por um desses transeuntes loucos
que nasce com facas nos dentes e chumbo nos pés.

O rapaz morreu em seguida, 18 anos apenas vividos
E uma solicitação de 10 mil reais por parte dos policiais
Para que o caso fosse abafado.

A vida passou realmente a ser tratada por esses senhores
Como mero acaso...

...basta apenas um bom advogado e esse sujeito
em breve estará nas ruas devidamente libertado...

Perdermos nossos valores
Ou o vil metal consegue mudar o que nos foi ensinado ?


Réginaldo Poeta

26 de julho de 2010

COLAPSO

As coisas que não morrem

Às vezes é difícil de perceber. Acontece quase como o fato de envelhecer: você não percebe a situação enquanto está passando por ela. E isso é tão conhecido, tão comum e comentado que já nem deveria ser surpresa. Com as coisas importantes da vida, também é assim. A gente se dá conta de que viveu algo fundamental depois de muito tempo, depois que se baixa a poeira levantada pela nossa própria excitação do tempo presente e nos é possível, finalmente, enxergar. O tempo, como a distância, é uma lente de aumento poderosa.

Somos levados por um grande sentimento de alívio quando olhamos para trás e, em meio aos escombros ainda fumegantes pelas explosões, reconhecemos o passo na direção certa que nos permitiu estar entre os sobreviventes. “Ela não era mesmo a pessoa certa”, você pensa quando consegue livrar-se de uma história que parecia escrita para não ter fim e, ao final, mostra-se como apenas mais uma entre tantas histórias. Havia uma única saída possível, e você a encontrou. Conduzido mais pela curiosidade que pela certeza, você seguiu tateando pelas sombras até o local que parecia mais iluminado, hesitou como todos os que têm de fazer escolhas, e saiu. Naquele momento, você não sabia se o local escolhido era exatamente de onde havia começado a trajetória, nem se o chão escolhido estava livre das minas explosivas. Só o fato de ter sobrevivido é que lhe mostrou que estava certo. Mais uma vez, o tempo.

Algumas pessoas frequentam nossa vida sem necessariamente termos permitido. Quase no susto, como aquelas pessoas que furam fila, cuja atitude invasora, desconcertante, nos deixa atônitos e imobilizados. Até que, sem razão aparente, somem sem deixar rastro. Nem elas nem nós saberíamos dizer porque aquela relação teria durado tão pouco. Anos depois, ao acaso, você se lembra de que fulano, como era mesmo o nome daquele cara, costumava vir às reuniões em sua casa, trazido certamente por alguém que você também não conhecia muito bem. Nós mesmos às vezes iniciamos relações pessoais ou de trabalho que, olhando depois, não parecem fazer sentido. Mais do que nos ajudar a nos conhecer melhor, o tempo nos ajuda a ver quem efetivamente não somos. Aceitar o que não somos nos ajuda a acolher e a escolher aqueles com quem temos afinidade. “No, no, no, it ain´t me, baby. It ain´t me you´re looking for”, diria Zimmerman, nosso poeta inspirador. Não, não, não, não sou eu, garota. Não sou eu quem você procura.

Felizmente para todos, há aqueles que estão próximos durante toda a nossa vida. Também não os percebemos, ao menos não imediatamente. Anos, décadas depois, você percebe que aquela pessoa sempre esteve ali, alinhavando suas histórias, a sua e a dela, com uma linha tão clara que se confundia com o tecido. Nos momentos decisivos, de alguma forma sempre esteve presente, de forma discreta. Você nunca precisou chamar, nem ela nunca precisou mostrar-se disposta. Um compromisso não verbalizado selava a responsabilidade de um para com o outro. Apoio era a palavra. Nos momentos de alegria ou de colapso, apoio. Certas coisas, para o bem ou para o mal, a gente não planeja. Talvez aconteça assim com as melhores lembranças. Um dia, com o olhar distante até onde a memória alcança, a gente pode se lembrar de alguém que a gente gostaria mesmo que nunca tivesse saído de perto. Nesse momento, com uma garrafa de vinho e a tranquilidade de quem já conhece as artimanhas do tempo, você pode ter a sorte de ter essa pessoa a seu lado. Não perca a oportunidade de fazer um brinde aos velhos tempos e às coisas que não morrem.


Oswaldo Jr.

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uns caras

tem uns caras brancos de olhos azuis que determinam os rumos do mundo, das guerras, das crises há muito tempo
mas uns caras de olhos puxados querem (e vão) dominar o mundo logo
e mais um tanto de caras de pele morena ainda tomarão decisões corajosas em tempos sombrios
outros caras usam corte de cabelo militar e andam com camisetas camufladas, exibindo seus rottweilers e pit bulls
tem alguns caras à solta no trânsito, que pensam que seu carro é apenas mais uma arma, ou uma extensão fálica do macho que eles jamais serão
enquanto outros matam por nada, todos os dias, nas grandes cidades
tem uns caras que se acham o centro das atenções, outros cheios da razão e por isso o mundo é do jeito que é
alguns tentam fazer a diferença, mas são poucos em meio à multidão de incrédulos
muitos caras gostam mesmo é de colocar defeito nos outros, mas não saem do lugar
feliz mesmo, é a tartaruga, que vive muito porque não fala mal de ninguém


Wallace Puosso

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Mil faces de um mesmo céu

Vinham tristes as águas que caiam do céu
Levando os telhados e os coqueiros da linda Alagoas...

- Alagando animais,documentos, pessoas -

Ferindo a simplicidade de quem se dedicava apenas às rezas.

Não atendendo aos conselhos,
D. Nêna mergulhou em busca do seu filho Flamarion
E até hoje não margeou...

Lama e caos; descaso e muita dor.


Réginaldo Poeta

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anexo: sobre desafios e encruzilhadas

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É interessante como se dá o processo de criação artística.

Inicialmente, “travei” com o novo tema proposto: colapso. O receio neste caso é escrever sobre mais do mesmo. A impressão que fica desta contemporaneidade veloz é que, tudo o que havia pra ser dito já o foi.

Então, dizer mais o quê?

Parece que a arte – de um modo geral – está numa encruzilhada. E como a arte é a princípio um reflexo do homem, podemos até dizer que este sim, está sem rumos.

O desafio de temas propostos intercaladamente entre eu e Oswaldo é um pouco nossa resposta a essa coisa confusa e ampla na qual se tornou a literatura contemporânea. O desafio de escrever algo poético sobre um tema aleatório nos leva a refletir sobre o próprio ofício da escrita. Uma reflexão importante em tempos de blogosfera, onde qualquer um pode escrever sobre qualquer coisa.

Pois bem. Para o tema desta semana, a fonte parecia ter “secado”. Mas eis que, numa caminhada no centro da cidade, a idéia “estala” de uma hora pra outra, sem avisar.

Basta ter um estímulo visual, sonoro, tátil e a criatividade vem à tona.

Assim se dá o processo de criação artística. Impulsionado através dos sentidos. E não há nada mais primitivo do que isto.

Será que, neste caso, uma saída para a nossa falta de rumo seja buscar coisas primais como RITOS, MITOS e sensações adormecidas há tanto tempo?

.

Wallace Puosso

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Quer saber sobre o que estou falando?

Visite um terreiro de Candomblé, assista uma apresentação do La Fura dels Bals ou do Teatro Oficina leia menos livros de auto-ajuda e mais os clássicos da literatura. Ouça Mozart, Bach e Beatles. As melhores sensações estão sempre por perto. Basta abrir os olhos e os poros.

23 de julho de 2010

TERRITÓRIO

Território é algo em mim
que não existe.
Não pressuponho fronteiras.
Abro-me por todos os lados,
por todos os flancos.
Influências, aceito-as todas
Não domino e não sou dominado
e é quase uma certeza
que eu seja mesmo assim.
Eu sou todos os que me cercam
e chego a achar curioso
que não se reconheçam em mim.

Oswaldo Jr.

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tabuleiro


Deve haver outro caminho, sempre há
Você precisa ouvir esses irlandeses
cantando Bob Dylan - ela me disse
Esse tempo já passou, respondi
não guardo resignação
Bósnia, Haiti, Ruanda
Muro de Berlin, Faixa de Gaza
(há algo de muito errado no mundo)

Tenho mil motivos pra sorrir
disse o Coringa ao homem-morcego
Parece piada, mas não é
Gothan City é bem mais perto
Eu e você já passamos tanta coisa
que nada mais anima

Vamos tomar um trago um dia desses
disse o palestino ao seu amigo
do outro lado da fronteira
As coisas são mais simples do que parecem
mas... como voltar pra casa
se você nem sabe onde ela fica?

Deve haver outro caminho, sempre há
Você sabe quantas vidas valem
o alcool que mantém seu carro
o cigarro que lhe deixa mais calmo
aquele colar de diamantes
aquele relógio suíço?

Há uma corda em seu pescoço
Uma arma em sua nuca
e você, tem mil motivos pra sorrir
Pelo menos foi isso que o comediante
disse à platéia estupefata.

Eu silencio.

Wallace Puosso

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irreguLAR

João-de-Barro construiu sua nova morada
No topo daquela árvore nobre
Num exercício profundo
De paciência e lucidez.

Veio o dono do território:
- cinturão de couro cru
- botas reluzentes
- chapéu importado
- ouro nos dentes

Apontou a arma e atirou sem dó
Derrubando a construção.

Quem envelhece o tempo:
O homem ou sua razão?

Réginaldo Poeta

21 de julho de 2010

CINEMA

Fast Foward


Dizem que perto da morte
a vida toda passa num súbito frente a nossos olhos.
(Por favor, rebobine antes de devolver)

Repassei nossa vida num fast foward
quadro a quadro,
cena a cena.

Nosso amor, no fim, agonizava
e eu nos assistia
numa tela de cinema.



Oswaldo Jr.


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O carona


Fade in. Externa. Plano Geral.
Primeiro, o som da chuva
depois vemos que é noite.
Aparece um carro numa estrada escura e deserta.
Agora uma música surge, aumenta:
“Riders on the Storm”.
Corte. Interna. Plano Próximo.
Um rosto que nos parece familiar.
Olha fixamente para frente.
Acompanhamos curiosos enquanto a câmera desce.
O carona, um sujeito barbudo, segura no colo
um exemplar roto de “The lords and the new creatures”.
As unhas sujas prenunciam um viajante andarilho.
Câmera sobe. Agora já sabemos:
o carona é um dos medos centrais da (tele) dramaturgia americana.
O motorista fuma um cigarro
e acompanha com a cabeça o ritmo da música.
Cantamos com Jim: “There's a killer on the road”.
O sujeito do cigarro puxa conversa:
“Como disse que se chamava mesmo?”
“Billy”. “Billy Cook” - responde o outro.
Uma baforada. Pianinho de Ray Manzareck.
“Ahan...”
Plano Detalhe.
O carona leva a mão ao bolso da jaqueta encardida.
Gelamos. Aquele frio pela espinha.
Sabemos o que acontece a partir daí.
O apelo do cinema reside no medo da morte.
Sete minutos desde que o filme começou.
A música enfim, termina. Sons de chuva e trovões.
Corte. Externa. Plano Médio.
A Câmera sai de trás do carro parado no acostamento
num travelling a acompanhamos lentamente.
pela lateral do carro, passamos pelo retrovisor.
O sujeito do cigarro não está mais fumando
cabeça recostada no volante. Câmera segue.
Vemos o carona logo adiante
Caminhando sob a chuva, Indo pra lugar algum.
Fade out. Letreiro sobe: “The End”


Wallace Puosso

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Trilha sonora distração

As cortinas da vida
Todos os dias se abrem,
Tolice é acreditar
Que o filme apenas se repete.


Réginaldo Poeta

19 de julho de 2010

SIMETRIA


Simetria


















Oswaldo Jr.

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I
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Amor Perfeito

Os olhos. Você já reparou nos olhos de um louco?
Já reparou que para ele só existe o ponto de fuga, mas não a linha do horizonte?
O desejo (sempre) tem dois lados.
O que você esconde que eu não possa ver?
Um mar calmo é sintoma de que o pior está por vir.
Porque a chuva cai em gotas?
E caem em intervalos rigorosamente regulares, você já reparou?
Há algo de estranho nas coisas que nos parecem perfeitas.
O sorriso de Mona Lisa, o rosto de Marlon Brando, a voz de Sinatra.
Os olhos. De Bette Davis.
O que sinto, tem nome de flor.
Você já ouviu Acrilic on Canvas? Pois deveria.
Às vezes é difícil esquecer:
"Sinto muito, ela não mora mais aqui"
.
.
II

3º movimento: música para Cordas, Percussão e Celesta (Adagio)

O Iluminado.

Um compositor dadaísta espera uma tarde de chuva, vai até um teatro, coloca um piano sobre o palco e fica em silêncio durante quinze minutos.

Depois quebra o piano a machadadas.

Alguns diriam que isso é arte.
.
.

PARA OUVIR: Béla Bartók, compositor e pianista húngaro (1881-1945)

.


Wallace Puosso


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Pra se guardar na memória

Quando vou à casa do Fabiano Baldi
E ele me chama e diz:

- Régito, escute essa aí!

É porque nessa hora, ele abre seu baú sonoro...

- Guilherme Arantes
- Beto Guedes
- Gonzaguinha
- Cool and The Gang

Meu olhos ficam grudados na simetria da fita k7*,
Meus ouvidos ficam em êxtase completo.

E em plena época de internet
Sou o mais arcaico e feliz dos homens modernos.

Depois da sonoridade posta,
Fabiano ainda traz o café coado
E mais um quilo de assuntos maravilhosos
E aí estabelecemos de vez a conexão com o divino.

*A fita cassete ou compact cassete é um padrão de fita para gravação de áudio
lançado oficialmente em 1963, invenção da empresa holandesa Philips.



Réginaldo Poeta

13 de julho de 2010

FOBIAS

Normal


Sim, eu sei. Eu devia ter medo.
Acontece que as fobias dos outros
são sempre maiores que as minhas
e eu acabo por sentir-me normal.
Nesta cidade,
onde malucos com pose de cineastas
vivem um mundo imaginário
e floreiras têm o papel
que as esculturas deveriam ter,
a realidade parece a única coisa
com chances de acontecer

Oswaldo Jr.

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manias


Ele se considera um sujeito normal. Previsível, meio sem graça até.
Levanta da cama todos os dias com o pé direito. Pra dar sorte. Caminha por calçadas listradas evitando as partes claras. Entra no escritório sempre pela mesma porta, dá a volta pela mesa (sempre de um lado só). À noite, quando o expediente termina, faz o mesmo trajeto de volta. Caminha a pé – não por opção, mas necessidade - pequenos trechos. Às vezes tem a impressão de ver coisas entre as sombras. Desde pequeno.
A cidade parece avançar sobre ele, lenta, imprevisível. Algo cai e se quebra. Alguém grita numa rua distante. Sons de passos. Ninguém no seu campo de visão. Ele sabe que a cidade cresceu.
Houve um tempo em que os trajetos eram menores. E os medos também.
Chega são e salvo ao prédio onde mora. Vence os 14 andares de escada. Não encara elevador. A única vez em que se atreveu, transpirou sem parar, o coração querendo sair pela boca. Nunca mais.
No apartamento, as portas sempre ficam abertas, semi fechadas ou não fecham de jeito nenhum. De propósito.
Sempre faz questão de afirmar aos amigos mais próximos:
“Sabe aquela estranha sensação de estar “sarcofagado”? Pois é. Se a palavra existe, ela ilustra bem o que sinto”. Sarcofagado.
Tirando essas manias estranhas, é um sujeito normal. Gente boníssima.
Muita gente tem medo de voar, Kieffer Sutherland tem medo de espelhos e Natalie Portmam, de tartarugas, a cantora country Lyle Lovett chora quando vê vacas e Woody Allen, além do medo de cores fortes, também tem medo de altura, lugares apertados, lugares com muitas pessoas e qualquer outro lugar que não seja Manhattan.
Vai entender.

Wallace Puosso

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1983


Era um dia útil.

Nove, dez, onze, meia noite
E nada do meu Irmão Luis chegar do trabalho.

- apreensão total nas nossas retinas -

Dormimos com olhos abertos,
Desejando ouvir o som doce do portão se abrir: nada.

Acordamos primeiro que o sol,
Morávamos no Jardim da Granja.

Minha mãe saiu em busca de hospitais,
Meu irmão mais velho foi ao IML/Delegacia,
Eu fui ao bairro do PUTIM, onde residia minha irmã,
A esperança era que o Luis estivesse por lá: nada.
Passei onde ele trabalhava, disseram que ele havia saído no dia anterior
Por volta das 17h00.

O diálogo não se estabelecia e já era perceptível em nosso olhos
A fundura do aperreio.

Começo de noite e meu cunhado Francisco
Chega com a notícia que encontrara meu irmão,
No hospital POLICLIN.

Meu irmão havia desmaiado em plena avenida 9 de julho
E um médico que saia do plantão
Viu meu irmão caído no chão e o socorreu,
Guardando ainda com muito carinho sua bicicleta.

Fomos visitá-lo no hospital
E aí descobrimos o impacto fulminante de uma paz desconhecida.

- alívio -

Outros dias úteis vieram
E a cada atraso do meu irmão
Meu coração já se hospedava no muro do desespero
Aquecendo o sangue novo de uma fobia recém adquirida.


Réginaldo Poeta